A desmaterialização da consulta é um tema que tem ganho cada vez mais importância na actualidade. Observa-se, no entanto uma cisão da comunidade em duas facções e aqueles que se fazem ouvir aparentam ser os que advogam pelos extremos.

Com o início da pandemia COVID-19, os instrumentos que os SPMS tinham vindo a desenvolver ganharam um relevo que não pode ser ignorado. Os Centros de Saúde e Hospitais fecharam as portas aos casos não urgentes mais do que uma vez. A receita sem papel poupou milhares de deslocações a unidades de saúde quando se pretendia reduzir a exposição e minimizar a sobrecarga dos profissionais, que começavam a aprender como trabalhar neste novo contexto.

Com a organização dos procedimentos da fase de mitigação, foi a prescrição de meios complementares de diagnóstico sem papel, enviada por SMS, que facilitou o isolamento dos utentes suspeitos e infectados, permitindo que as suas únicas deslocações fossem entre o laboratório e o domicílio, sem recurso a transporte físico de credenciais.

Os privados beneficiaram também com a PEM Móvel, em adição a outros softwares de prescrição desmaterializada.

Até aqui, tudo parece bem. Então onde está o problema que distingue esta crónica de um mero elogio aos trabalhos de desmaterialização?

Pedidos de comissão de serviço dos internos para as Jornadas Patient Care, 2019

O problema é a filosofia em si, advogada por alguns, de que devemos caminhar e depressa para uma desmaterialização total. Procurando no Google por “Hospital Sem Papel”, encontramos slides do Hospital de Ovar, referindo impressoras retiradas de gabinetes e uma redução importante das prescrições materializadas. Lembro-me inclusivamente de uma referência, creio que por um administrador hospitalar, que o acto médico originalmente não utilizava papel.

Mas o acto médico originalmente também não contemplava listas de utentes com 90 ou mais anos. O acto médico não contemplava regimes terapêuticos com 8 ou mais fármacos.

O dia-a-dia de um Médico de Família inclui momentos óptimos para a desmaterialização e momentos péssimos para a mesma. Um utente jovem que estou a atender com uma amigdalite é tão bem servido com uma amoxicilina no telemóvel como com uma na mão. Não se vai esquecer do que foi prescrito, tem uma dor de garganta para lembrá-lo de ir à farmácia. Contamos que os farmacêuticos vão adicionar de alguma forma à embalagem a prescrição que foi feita, mas se não o fizerem, o jovem deve lembrar-se do que foi dito na consulta.

Simultaneamente, no gabinete ao lado do meu, um colega está a falar com um asmático da mesma idade. Este não tem perfeita noção da sua doença, não percebe sequer porque tem que fazer um medicamento todos os dias, quando só tem sintomas de vez em quando. O meu colega aborda a doença, explica porque tem que fazer terapêutica contínua, mostra-lhe o dispositivo que vai passar a utilizar e faz uma demonstração com um placebo. No final, pergunta se tem alguma dúvida, ao que o utente responde “então vou fazer um medicamento para a asma?”. Este utente precisa de todos os lembretes possíveis e imaginários, pelo que levar um papel na mão é um call to action e uma guia terapêutica.

O utente que faz o seu medicamento para o colesterol, os dois da tensão, o do estômago, “a bomba dos pulmões”, o para dormir, o “para afinar o sangue” e outros que desconhece o propósito, até pode ter a receita na mensagem do telemóvel, mas quando for à farmácia não vai (nem pode actualmente) levantar a receita toda. Vão dar-lhe um talão microscópico, com letras esbatidas, que as suas cataratas já não deixam ver há 2 anos (e a consulta de oftalmologia é daqui a outros 2) a dizer quantas caixas ainda tem. O talão resiste heroicamente em casa durante dois dias inteiros antes de ser confundido com o do supermercado e acabar no lixo.

A solução encontrada pelo utente será:

a) não saber da medicação que toma, deixar acabar e colocar a saúde em risco;

b) assumir que a mensagem já não tem nada e voltar ao médico para pedir mais caixas. Com sorte, o médico verifica que ainda existem fármacos na receita anterior e reimprime. Voltámos à estaca zero. Com azar, o médico manda outra SMS, retomámos o ciclo com a agravante de termos esticado mais um pouco o elástico do SNS com a utilização desnecessária de um administrativo e um médico num procedimento evitável.

Isto acontece, claro, também com a receita na folha A4. Esta também se perde. Mas a prova da sua utilidade são os pedidos de renovação que nos chegam e que são a própria receita utilizada, onde o farmacêutico foi escrevendo quantas caixas restam de cada medicamento. Quando atingiu o zero, veio renovar.

Por vezes, o utente ou familiar pede a receita por e-mail para poder imprimir e ter ou utilizar na farmácia. Isso não é, para mim, nenhuma desmaterialização, é uma transferência de custos. O papel não saiu de uma impressora no consultório, mas saiu. Não é uma medida ambiental, é uma medida com fins económicos e prejudicial ao paciente, quando este não tem recurso para pedir receita em papel. Este será o caso dos gabinetes onde não existe impressora, e onde certamente o médico fará de tudo ao seu alcance para não ter que imprimir para outro lado.

Pelo caminho por estas duas consultas, passámos por uma mãe insegura e o seu filho de 6 meses, e a enfermeira que lhe entregou um panfleto sobre como fazer a diversificação alimentar. Nos próximos 6 meses aquela folha terá mais importância que a bíblia lá em casa e foi algo impresso na hora.

Estes são exemplos ilustrativos e não uma lista exaustiva. E, ao contrário de algumas disciplinas, na prática médica temos que incluir todos os utentes, correndo o risco daqueles cujos problemas não resolvemos serem transferidos para o colega médico legista.

Qual é a solução?

A solução necessita de três componentes, na minha opinião.

Um é a “Carteira MySNS”. Sendo um conceito interessante e importante, particularmente pela adopção dos smartphones, que hoje surgem mais depressa na mão do que o relógio no punho, esta aplicação tem o potencial de ser um repositório de todas as receitas e todos os fármacos que o utente tem disponíveis para levantamento. Se implementado correctamente, e julgo que ainda falta um pouco para chegar lá. Da única vez que utilizei, há uns meses, quase me convenceu.

Outro é tempo. Tempo para as gerações serem substituídas por novas, que já tomaram a tecnologia como parte do quotidiano e a usam, não “porque tem de ser” mas porque “é melhor”. Existe uma representação desproporcional da população sénior e dos seus pais nas consultas e nas prescrições complexas. Não os vamos convencer a abandonar o papel, pelo menos não numa percentagem significativa.

E o terceiro é a desmaterialização do serviço interno antes da desmaterialização do acto da consulta. A quantidade de papel gasta na comunicação entre serviços, no internato, de e para o centro de saúde, merece atenção e tem consequências notórias. Alguém tem que imprimir, alguém tem que mandar, alguém transporta, alguém recebe e separa para outro ler e processar. São processos que também não são exequíveis por e-mail, dada a milenar tradição em Portugal de não devolver avisos de recepção e de não atribuir importância a e-mails, na generalidade. Sem resolver este problema, de gestão documental, como podemos ter qualquer justificação moral para recusarmos um pedaço de celulose e tinta preta a uma pessoa que se reformou há 30 anos?

Temos que esperar e trabalhar. E até lá precisamos de ter toner no gabinete.